Hoje nem dormi.
Fiquei versando no falar de dentro. Falar versando prega mais.

Deus é paisagem.
E paisagem sempre sai bem na foto. Mas quando é fulano, cicrano, beltrano Moreira de não sei quê, com nome, endereço e telefone, aí a coisa muda. Aí a coisa surda. Aí a coisa sempre com algum defeitinho que necessite ser amado, porque não tem concerto. Amar a Deus é amar nossos próprios certos. Amar ao próximo é amar o feio. É amar a cobra grande que dorme na Lagoa. A cobra grande que é Lagoa porque não cabe no certo de ninguém. Mas existe mesmo assim.

Diz que perigo zombar de Assoviador.
É assovio longo o dele. Cansado, por carregar morto. Assovio de pegar tempo para continuar carregando. Se, no meio da noite, alguém repete o Assoviador, ele vem. Se transforma em perua, cachorro, cabra, morcego, e no que mais puder parecer de assombro. Depois vai embora. Deixa o susto guardado no aprender da pessoa. Medo também ensina.

Assovio de vento é grave ou agudo dependendo do caminho.

Pescador trabalhando de noite deixa o mar estrelado.

Às vezes preciso ser para dentro.

O mar nunca dorme.
Está sempre descansando vida. Enchente daqui é vazante d’acolá. O mar tapeteia um bom pedaço de mundo. E nesse pedaço é ele quem diz como o mundo deve ser. O mar dança com a lua. Nem manda nem obedece. Em tempo certo o mar se enche de lua e brilha bem querer. Em tempo certo o mar se prega com a linha do céu para não saber quem é quem. Quando o olho está dentro do mar, só existe mar. Quando o olho está na beirada do mar, o mundo escorre para fora.


O desaquarelado do céu espera alguma palavra tropeçar em mim.
Cato com a mão e levo para você. Mas se as palavras forem junto com o vento, a mais colorida vai pousar maneira no seu ombro. Vai assoviar flor, siri, caga fogo, rede de dormir e tudo mais que combinar com teu olho marisquento. As palavras se combinam conforme o olho de dentro.

Xeru, meu lindo.
Borboleta.


Meu querido Sr. Leão

Hoje teve Mar.
Caminho e acento andaram na nossa vista, mostrando o desenho de olho dos pescadores. História de mar conta-se no mar. História de terra conta-se na terra. Junto com o Nel foi o Eurean, pai de Letícia e pescador mais novo de Caetano de Cima. Fomos atrás de Novinho que, muito longe, retirava o material. Um contador de histórias que não perde a deixa. A caçuera brilhou.

   Tem coisa que não dá para contar.


Um sentir-se parte do mistério. Um nem sei que de infinito.

Nel contou história de encantamento com olho de quem já viu. A verdade não está no acontecimento, está no olho.

O entendimento de corpo demorou a sair do mar. Mais do que o corpo mesmo. Essa confusão deu motivo para Dona Luísa servir sua sabedoria de folhas e plantas. O limão de Dona Luísa presenteou a retirada do meu enjôo. Tenho que retribuir a visita.

Chegou Seu Chico Quirino. Nel e Seu Chico trocaram conto aqui e acolá. Ganhar a morte, enganar o Diabo, macaco, onça, jabuti, neguinho encantado da meia noite. Foram até o Maranhão e voltaram antes de anoitecer. Seu Chico brilhou o olho fazendo a dança do coco brincar em mim. Aprendi. Depois desencantou na noite. Até domingo.

Ficou eu, Edineide e Sandrinha, brincando de cantar, contar história, saber do mundo de dentro pelo mundo de fora. Fizemos peixe apimentado na medida certa. O peixe que eu pesquei com a mão.

Se é verdade que eu pesquei? Claro que é Sr. Leão. Uma verdade tão necessária quanto você.

Xeru,
Borboleta.

Tive uma conversa muito séria com Nossa Senhora Desatadora dos Nós:

Cada nó desatado das cabeças dos empresários e políticos desse país para que eles apóiem a realização do documentário do Assentamento de Sabiaguaba vira desenho na igreja de Matilha.

Um desenho já esta garantido.

Ontem foi o primeiro encontro oficial do Laboratório para garantir dias, horários e turmas.
Alguns óbvios indispensáveis:

- Liberdade dada é sempre muito larga ou apertada. Cortar e costurar dá trabalho, mas é justo.
- Se for para não estar estando, melhor não estar.
- Líder nasce em qualquer lugar. Nasce dentro.
- Silêncio na hora certa é tão demolidor quanto palavra na hora errada.
- Para pescar palavra gorda tem que mergulhar no mar de memórias.
- Quando se pesca palavra gorda uma só já alimenta.
- Querer no verbo presente quando finca no chão ninguém tira.
- Cada um sabe dos seus porquês. O punhado dos porquês vira emaranhado ou colar de miçangas, dependendo de como se pegue.
- Convivência ou sem vivência tem que pensar sobrevivência.
- Cada idade tem sua vazante e enchente nos soluços do tempo.


- Com ou sem medo, vamos todos encontrar o último barqueiro.

Amar é decisão.
Boa noite, meu amor.

Xeru,
Borboleta.

Oi, Sr. Leão.

Os últimos dias foram de muitos buscados e alguns bons achados. Entre buscados e achados minha cabeça perdeu espaço de vazio para te dizer do mundo. Mas tô aqui.

E por falar em espaço, já contei da alma das pedras?

Acolá de onde o mar vai quebrar, pisando pisando, tem chão de pedra. Depois das oito, nove horas, o mar encurta de vazante para banhar as pedras de sol. É nessa hora que Vanda chama seus filhos para catar polvo.



buscando o esbranquiçado de areia. Isso é sinal de que tem polvo se escondendo. Achando se espelha o fora da loca com siri ou outro polvo já catado. Chama fiiuuu fiiiiuuuu pra sair. Às vezes sai e Vanda cata. Às vezes fica desconfiado e não sai. Nisso Vanda enfia a mão na loca pra catar na unha. E cata. Seu catar vira cuzcuz, com arroz ou ensopadinho com verduras. Vanda engorda a alma da gente.

Uma fábula de existência:

Era uma vez um canto, cheio de seres de tudo quanto é formato, cor, necessidade, tamanho. Tinha uns que eram enormes. Tinha outros tão pequenos que pareciam nem existir. Mas existiam. Por serem tão pequenos, fizeram comunidades para ter mais chance de esticar a existência. E assim viviam os grandes e os pequenos. Uns seres, nem grandes nem pequenos, precisavam garantir a sobrevivência matando outros seres. Natural. Para fazer isso inventaram muitos jeitos. Tinha jeitos que só tirava a vida que ia alimentar a própria vida deles. Mas tinha jeitos que matava vida demais. A vida daquelas comunidades tão pequenas que pareciam nem existir. Mas existiam.  Os seres nem grandes nem pequenos tinham muita pressa de existir. Como esses jeitos, de matar vida demais, eram rápidos, usaram. Até chegar o dia em que as comunidades não existiam mais. E olha como a vida é misteriosa: A presença dessas comunidades não era percebida, mas a ausência foi. Depois que morreram o canto todo morreu também, como morrem as dunas quando perdem suas botijas escondidas, E como depois da morte sempre vem um pouco mais, tudo mudou no mundo. Mas isso já é outra história.


Mesmo quando temos muito poder de fora. Creio até que o poder de fora diminui o poder de dentro. Mas quando as pequenas comunidades se juntam podem ficar fortes dentro e fora. Assim como quando o mar se junta pode fazer um país inteiro virar mar também. Sendo bom ou ruim, poder sempre pode.

Na paradinha do café,

Meu amor, você não sabe quem eu acabei de encontrar: Zeca Pagodinho! Esquentando a nova caixa de som do Grupo de Mulheres.

Suspeito que também aqui, mesmo quando só sobra o bagaço da laranja, o povo canta sem vacilar, sem se exibir, só pra mostrar que também faz parte do tempero. E como faz.

Eu aqui, e acolá da areia pescadores me pastoreando. Cada um inventando o outro.

Depois do sol

O óbvio é meu brinquedo favorito.

Meu amado Sr. Leão,

Conheci o Seu Luís
Um homem de verso bom
Me contou que nos seus versos
Ele tirava era som

Explicou que a maneira
De violeiro ganhar
Era juntar povo todo
Pro chapéu colaborar
Cada um dava um tanto
Via a viola cantar

Disse que só parou
De fazer a cantoria
Porque a Dona Tereza
Não gostava da folia

Então resolveu guardar
A viola, sim senhor
Que desses versos nenhum
Valia mais que o amor
Mas ele me disse isso
Com o olho cheio de dor

Desconheço porque D’ Tereza
Não gostava da viola
Talvez nem ela mesma
Saiba o porque disso agora
Têm umas coisas que ficam
Têm outras que vão s’embora

Já no meu caso te digo
Com muita satisfação
Verso que faço e refaço
É tudo pro meu Leão

Quando o sol azular
E o mar endurecer
Quando elefante voar
E a lua apodrecer
Nem se chegar esse dia.
Vou esquecer de você.

Beijo,

Olha, Sr. Leão,

Hoje será o primeiro encontro só com os participantes do Laboratório.

Conheci a Aldênia. Veio da renda de bilro da comunidade de Maceió. A almofada de bilro é brinquedo de fazer renda e música.

Ah! Senhor Leão. Queria muito que você estivesse aqui.

Xeru,
Borboleta.

Você só precisa maneirar a alma para descansar um homem novo.
Tanta coisa pra te contar! Mas hoje o sono veio de pau de arara.

Xeru! Borboleta.

Meu amado Sr. Leão.

O Nel contou tanta história de assombração, lobisomem, pernudo que cheguei no quarto vendo o não visto,



 Medo.

O céu clareado de lua inventa amanhecer. Mas o relógio conta 10 minutos para a meia-noite. Fica o dito pelo não dito e cada um que se sirva da hora que quiser.

Hoje fomos na Matilha. Valneide me apresentou a Nossa Senhora Desatadora dos Nós. Valneide conhece muita gente importante.

Em Matilha o povo me olhou com deslumbre. Primeiro guardaram um acanhado, depois desataram seus fazeres.

Já tinha ouvido falar de produção artesanal de coloral, Sr. Leão? Urucum com farinha.

Tudo no mundo muda de gosto.

Xeru!
Sua Borboleta.


Meu amado Sr. Leão,
Essa terra demais combina com seu olho marisquento.

Hoje acordei antes do rabixo do sol, botei biquíni e saí pelo caminho do nascente. Vi o céu desaquarelar até subir o dia. É essa selva aqui que você merece. Aqui a água do mar é sempre morninha.

Depois da primeira merenda Edineide foi nos levar pela trilha até a Lagoa Grande. Edineide é uma menina pote.


Busquei.

A trilha começa pelas moitas, entra pelas dunas e passa pela Lagoa de Dona Mariquinha.  Nesse ponto a gente descansa o restinho de saudade que a Lagoa deixou antes de voltar para o mar. Depois sobe o Morro da Mala, lê o “m” desenhado de areia e tenta enxergar a luz que indica onde está o tesouro que o morro guarda. Daí entra pela estrada que passa na frente do Ponto de Cultura “Abrindo Velas, Pescando Culturas” e pela Escola do portão aberto.

É isso mesmo, Sr. Leão, aqui a Escola tem portão aberto.

Bebemos água e seguimos até achar o caminho que fica do lado da casa do Zé Nel. Aquele moço sisudo da reunião da quarta feira que fincou opinião para as crianças participarem, e que, depois descobri, também é cordelista. Pois esse caminho é cheio de murici, redondinha de gostosa.

O próximo canto era para ser a beirada do cemitério, mas inventei de irmos por dentro. Edineide esquisitou, mas aceitou, era dia.

Contou da juventude do cemitério, mostrou o túmulo da bisa, Dona Josefa, uma rezadeira respeitada, plantada de sabedoria. Mostrou ainda o primeiro pequeno túmulo do lugar, cavado em 2003.


Antes ninguém queria, era tudo areia. Quando a Vera guardou sua filhinha nesse canto, o povo gostou de guardar também e ficou sendo. Mas só guarda de quando em quando porque aqui o viver é esticado.

Aqui, meu querido Sr. Leão, você pode passear por suas idades até o dia de ir para onde todos vamos. E até para esse dia aqui tem canto.

Mais um punhado de dunas e chegamos na Lagoa Grande. Fiquei pequena lá. Bananeira, quem fica mais tempo debaixo d’água, quem nada mais, corrida. Risada risada até avistar o carro de boi, nossa carona para casa.

Xeru,
Borboleta.

Em dias como hoje, a Praia de Caetano acorda sincera. A beira d’água combina com o andar da gente de uma maneira que passo e olho pousam no lugar certo, sem machucar viva alma de siri, viva alma de sapo, viva alma de pedra nenhuma. Em dias como hoje, o mar acorda com vontade de mostrar para os pés do mundo que tudo tem seu lugar, na enchente e na vazante.

Mesmo dia, depois de ir caçar siri.

Olhe, Sr. Leão, eu quase te falo do medo de que o povo das selvas cinzas desasegrede o tanto que o mar de Caetano é sincero. Pano de sinceridade é muito fácil de manchar. Mas voltei lá na beirada da praia com Nel, pra catar um siri amarelo que se mostrou pra mim na hora do passeio. Fui me gabando de saber onde ele estava. Fui pronta pra catá-lo de troféu. Fui e ele já não estava mais lá. Eu também não ficaria. O mar daqui é sincero, mas não é besta.

Quando vier, Sr. Leão, venha com respeito e reverência, porque o mar aqui é outra terra.

Outra coisa que quero te dizer,

A Lagoa da Dona Mariquinha destruiu o que estivesse na frente pra reencontrar o mar,
Os coqueiros murcham se ficam longe das mãos que os plantaram,
As dunas se desmancham quando levam suas botijas de ouro,


O jeito da minha saudade é inventar você.

Ontem passamos o filme para a comunidade, na igreja. As crianças foram as primeiras a chegar. Senhoras e adultos vieram pingando. Gargalharam com “Os Narradores de Javé”. Depois me apresentei e contei sobre o projeto desde o começo. Olhos, silêncios, fuxicos e propostas se misturaram até chegarmos a um acordo. Duas turmas de 15 pessoas entre crianças, adolescentes, adultos e idosos. 22 pessoas já estão inscritas. As outras 8 tem até quarta feira que vêm para chamar o querer.

Teve um instante que se maliciou das crianças não participarem. Mesmo querendo. Nessa hora vi a leoa de Valneide subir pra pele, pro olho, andar firme pelo caminho das palavras pra defender a cria da escola que ela planta todos os dias. Vi também o homem sisudo e atento da reunião de domingo fincar sua opinião como quem enterra uma bandeira na lua: As crianças participam sim. E como participam!

Você disse que diversidade é conflito, pois liberdade também é. Esse se fazer no conflito do caminho das palavras engorda a qualidade de existência do povo daqui.

Xeru,
Sua Borboleta.

Hoje acordei 05:25 da manhã, abri a janela, vi o céu aquarelado, na beirada de amanhecer.

- Ciências de Pescador ou da Geografia de olho do Nel:

Para colocar a caçuera no mar é preciso decidir um caminho e um acento. Primeiro se vai pro mar sem nem olhar pra trás. Quando chegar bem em cima do mar aí se olha pra trás e mira um coqueiro alto. Nisso tem que fazer esse coqueiro andar até a biqueira da casa de Neide. É nessa hora que mora o mistério: Coqueiro não anda, quem anda é quem está no mar. Então do mar mesmo o pescador bota o barco de um modo que veja a praia como dito. Chegando aí metade do caminho está andado. Agora é fazer o acento, porque de outro modo o pescador pode seguir em frente toda vida até aportar na África, que seria até bom negócio, mas não é esse o caso. O acento é um segundo caminho, igualzinho no modo de escolher e alinhar, podendo ser até menorzinho, pra dar mais precisão. Os pescadores daqui alinham em um morro com umas moitas. Pronto. Agora se pode guardar a caçuera no ponto certo que o mar devolve.



Ontem fui na escola daqui. 23 alunos em toda a escola. A escola tem turmas mistas. Muita árvore frutífera plantada. Muita terra. Crianças atentas, se sentindo conhecidas. Entre as árvores Valneide mostrou o urucum, usado pelos índios para dar boa sorte às batalhas. No caminho para chegar na escola encontramos Seu Vitor. Ele falou da comunidade e da relação entre os povos. Falou dos problemas e da história do Assentamento. Aqui o povo todo fala, participa, se coloca, não é só um ou outro que decide. Aqui representante é representante mesmo, não é dono.

Valneide e Seu Vitor me explicaram algo que, às vezes, fica misturado para mim. Que Sabiaguaba é nome da comunidade, do Assentamento e do Distrito, composto por várias comunidades. Isso confunde mesmo. O Assentamento é formado pelas comunidades de Pixaim, Matilha e Caetano de Cima. Quando escrevo Sabiaguaba, as vezes quero dizer Caetano de Cima, as vezes falo do Assentamento, as vezes do Brasil inteiro.

Olhe, Sr. Leão, Tem dia que acordo já te saudadeando com poema. Hoje é um desses dias.

O bonito não é a coisa em si, é o jeito que a gente olha, o modo como se vê e faz ver. Ver é uma benção. Fazer ver é obrigação.

Eu estava, até agorinha, passeando pela praia, andando na areia, para fazer meu pé voltar a querer dançar. O resto do corpo já quer, só falta pé mesmo. 

Quando a gente está onde está de verdade o mundo nos mostra o que tem que ser. O jeito que as coisas querem existir. Em Sabiaguaba, as pedrinhas coloridas da praia, de manhã, imitam o desenho estrelado da noite. Quando junta as pedrinhas, a areia e o reluzente da beirada da maré, a praia de Sabiaguaba fica mais céu que o próprio céu. A natureza por aqui tem desses milagres.

Foi prestando atenção nos milagres daqui que me veio o corpo daquela idéia de quando ainda estava no Rio de Janeiro. Algo simples e justo que possa envolver toda a comunidade: Escrever e desenhar nos morros utilizando as pedrinhas da praia.

Durante a galinha caipira, antes do café.

Meu querido Sr. Leão,
Você já sabia, Diversidade é conflito.
Eles foram primeiro nos símbolos, depois no povo. Os policiais de Fortaleza quebraram a Nossa Senhora e rasgaram as bandeiras. Eles são pagos com nosso dinheiro. Mas defendem o Pirata. Eles são nossa gente, mas defendem o Pirata.

Valneide brilha os olhos pra contar como foi. Ela diz que o povo quase pegou o Pirata. Se pegasse, cortaria seu cabelo. O Pirata é conhecido no país como protetor do meio ambiente. Mas no meio ambiente do Pirata só cabe ele. Agora tem Internet na comunidade e Valneide pode mostrar sua versão. Tem desperdícios que engrandecem o mundo inteiro.

   A versão de Valneide vira verso dentro de mim.

Xeru,
Borboleta
   A arte necessita dos vazios para se fazer.

Hoje conheci o ponto de cultura “Abrindo Velas Pescando Culturas”. Quatro computadores dos quais apenas dois dão acesso à Internet. Mas que revolução fez essa Internet por aqui. A crianças e os adolescentes, na idade onde a fome de mundo faz o que o mundo vai ser, foram os primeiros a apreender o possível e inventar alguns impossíveis que estivessem mais perto. Valneide lembra dos Piratas Cabrais chamarem desperdício a vinda da Internet para Sabiaguaba.  Tem desperdício que, em vez de gastar, engrandece. Ajuda a desatar-se dos Piratas Cabrais e vê quem é nossa gente.

Conheci Amanda. Veio da cidade faz dois meses. Está na quarta série, mas já sabe ler bem. Fez questão de mostrar. Diz que não gosta da cidade, porque lá tem muito carro e as pessoas vivem se matando. Em Sabiaguaba dá pra brincar na praia e as pessoas se visitam. Ela fala muito. Sabe cantar até música em inglês, conhece a história da areia movediça e quer participar do laboratório. Mesmo sem ter coragem, ela quer. Diz que todo mundo está sabendo da reunião de quarta feira. Porque falaram na igreja.

Hoje começou minha época de sangrar. Nesses dias as marés me transbordam. Sou mulher até a alma.


Mesmo dia, depois do peixe cozido.

Nel me explicou que o mar é redondo. E que todo mundo mora em ilha. O mar de Sabiaguaba fica de frente para o que banha o Chile e, antes de chegar no Rio de Janeiro esse de Sabiaguaba ainda pega na mão de muitos outros mares do nordeste. Meu entendimento de olho foi uma ciranda de mares desenhando a América Latina toda. Nel tem a geografia dele. Uma geografia de olho que o leva pra onde ele quiser ir.

Agora começou a chover. Quando chove fora da casa, pinga pouquinho dentro. Como se a casa fosse o dentro e o fora se combinando. Sandrinha me perguntou quem é você, Sr. Leão. Nesse instante entendi que você é que nem essa casa: O dentro e o fora se combinando.

Demorou, mas ontem a Letícia finalmente brincou comigo. Quando o coco toca, se não acordam a Letícia, ela chora. Zanga pro dia todo. Diz que, quando crescer, vai aprender a dançar o coco. Mas o povo sabe que nem é preciso esperar. Lele entra na roda e já fica grande.

Sandrinha, depois que eu contei da geografia do Nel cirandeando a América Latina, ainda deu um jeito de juntar a América Central, América do Norte, o Mario, o Oswald e o Manifesto de Andrade na mesma dança. Tenho pra mim que Sandrinha está certa. Nossa existência em tempo e espaço, de longe, é um bordado só. De perto é que a gente vê a diferença das miçangas.



Meu querido Sr. Leão,


Fizemos a reunião com a participação de poucas pessoas da comunidade. Entre elas o presidente da associação de moradores, um homem sisudo que mais ouviu do que falou, e que, no final, cedeu o tempo da próxima reunião da associação, na quarta feira, para que eu mostrasse o filme “Narradores de Javé” e falasse sobre o projeto para toda a comunidade.

Valneide é líder comunitária, artista, mãe e mulher. Ser isso no Ceará é cruz e troféu numa barca só.


Conheci Dona Maria de Fátima, uma senhora de rosto desenhado pelo tempo. Ouviu, atenta e quase invisível, a toda a reunião. Depois me catou para dizer mansinho seu querer participar. Dona Maria de Fátima é uma pessoa concha. Seus olhos e ouvidos tecem um fio perolado que ela guarda dentro de si. Quando esse fio se desabrochar vai ter renda para enfeitar o mundo todo.


Conheci também Ieda. Ieda desenha no bilro. Ieda gosta de arte. Ieda quer, mas esta enferrujada. Uma ferrugem medo de nem sei o quê. Uma ferrugem que passa no fazendo, foi o que Valneide disse.


Valneide canta músicas que ela compôs. Músicas da terra e da vida, dos costumes e porquês de um povo com fala rebolada e vontade firme. 


Almoço, Sr Leão.
Servido? Peixe, baião de dois, doce de caju.


Xeru,
Borboleta.

Gosto bom o de ser brasileira e nordestina! Os moradores daqui são protagonistas. Bordam suas histórias. Eles resistem juntos a uma realidade feita de grilagem, especulação e outras modas que você deve bem conhecer nessa selva feia que te coroa rei.

Escrevo do alto de uma duna, de frente para uma praia. A luz do dia acena tardinha, dando passagem para o cobertor da noite.

55 famílias. 50 casas. Nel disse que, antes do fim do mês, já saberei o nome de todos. Penso no nome do projeto: De Onde Viemos; Quem Somos; Para Onde Vamos. Como se desenha uma existência?

O Nel falou que aqui as rezadeiras estão morrendo. Para virar rezadeira você dorme, sonha que é e acorda sendo. Precisamos aprender isso: dormir, sonhar que é e acordar sendo.

Aqui, as pessoas têm pele cor de barro e olhos cor de índio. Você tem o olho melado de Brasil, e sua pele também é cor de barro. Será que, além de ser do mundo inteiro, você também é daqui? Dessa terra em que, no meio de tantos nãos, o povo sonha com sim e acorda sendo?

A lua já sorri, como quem sabe de algo mais. O céu já aveludou. Hora de achar o caminho.

Beijo,
Borboleta.

Depois da tapioca, mesmo dia,

Querido Sr. Leão,

Você sabe o nome das estrelas?

O Nel sabe. E é pra lá que ele olha quando está no meio do mar, coberto de noite. Tem uma que brilha muito e se faz guia de pescador. Senão ela, o Cruzeiro do Sul, que todo mundo conhece. Mas se a noite cismar de anuviar até o Cruzeiro do Sul, Nel olha mesmo é para o lugar onde as ondas correm. O lugar onde as ondas morrem. As ondas dormem na beirada de onde Nel plantou a vida.


O caminho de estrela derramado certinho pela noite, chama caminho do Bode. Só ficou o caminho mesmo, porque o bode, até hoje ninguém sabe onde está. Desconfiam que está atrás da lua, mas como ninguém tem prova de nada, fica o dito pelo não dito.

O mar está raleando por aqui. Correndo para o oco do horizonte. É o inverso da praia de Atafona, onde o mar cava o horizonte e empurra areia para os olhos da cidade.


Amanhã será a primeira reunião com algumas pessoas da comunidade. Falaremos sobre os “porquês”.

Beijo,
Sua Borboleta.


Estou na casa da tia da Sandrinha. Uma cearense, mãe solteira convicta de sessenta anos que fala pra caramba!! Cheia de histórias pra contar. Neta de um romeiro, grande amigo do Padre Cícero, pai de 36 filhos e avô de metade de Juazeiro. Aureliano Pereira da Silva. Um dos fundadores e principal responsável por tornar Juazeiro do Norte a cidade da romaria.

Carnaval do Rio de Janeiro, 07 de março de 2011, 00:17
Domingo iremos.

Achei algo valioso entre os meus Galeanos: Um pequenino conto sobre Caldeirão. Versão cearense da história de Canudos. Assim como Canudos, a comunidade de Caldeirão não foi perdoada do crime de se opor à propriedade privada. O extermínio não encontrou exceção. Quero visitar Juazeiro do Norte. Desconfio que irei encontrar o pedaço de Brasil que você tanto procura.

Estou bastante ansiosa para começar efetivamente o Laboratório.

Com amor,
Borboleta

Conversando agora contigo, me dei conta de quantas possibilidades poéticas essas três perguntas abrem.

Posso construir um processo de produção de imagens e coletânea de textos sobre a morte, as missões e as origens. (Mais três livros, para a bagagem...)

- Augusto Boal,
- Eduardo Galeano,
- Maria de Oliveira “O que tem que ser tem muita força”

Penso em algo que envolva toda a comunidade. Uma espécie de trabalho que dependa da colaboração e do afeto de todos. Algo que seja, ao mesmo tempo, simples e justo.

Muitos sonhos. Porque sonho acordado é começo de tudo. Sonho do “e se fosse”.

Entre o “e se fosse” e o “é assim” tem um pântano. Do entremail desse pântano nasce a arte. É daí que nasce minha gastrite também.

Vou descansar. Hoje já é amanhã.
Um beijo!
Borboleta.